Conheci a A. quando vivi em África. Muito simples, muito dada, adoptou-me como eu a adoptei a ela e ao marido e à sua filhota, a I. Sempre que brincava e abraçava a pequenina, que tinha a idade das minhas sobrinhas, abraçava em pensamento as minhas meninas, mitigando assim as saudades. Aquilo sempre foi amor mútuo, como aliás acontece geralmente comigo quando lido com crianças. A A. estava grávida, já avançada, e esperava outra menina.
Num dia de sábado de manhã, tinha eu saído com as minhas colegas e recebo um telefonema dela. Aflita, cheia de cólicas, e eu longe, embora já de volta a casa. Pouco depois outro telefonema. A A., sozinha em casa com a filha, tinha entrado em trabalho de parto. Aos sete meses, a bebé nasceu, mas morta.
Foi a primeira vez que lidei com o pesadelo do aborto mesmo ao pé de mim. Um horror, que não há outra maneira de o descrever e que não consigo pôr em palavras, pela solidão e desespero em que ocorreu. Ao chegar à clínica, onde a fomos aguardar, apanhámos a A. a entrar na sala de partos. Lembro-me de um olhar e de uma mão me segurar e me dizer: 'Cuida da I.'
Horas mais tarde, nos braços do pai, a I. agarrou-se a mim. Foi uma tarde passada com ela, a ver as flores e os animais, a tentar sossegar-lhe o medo daquilo que não percebia. Foi nos meus braços que acalmou e deixou que o médico a examinasse por causa da febre que trazia, foi comigo que foi fazer o despiste da malária, foi no meu colo que adormeceu, em casa, foi lá que me contou o que tinha visto (abençoados dois anos que não nos permitem perceber tudo).
A A. voltou, como eu voltei, para Portugal. Sem a filha mais nova, que deixou lá, com o coração completamente amarfanhado. Ainda hoje, no trabalho, uma vela acompanha-lhe o ritmo dos dias. 'Quando a acendo, sinto a minha menina comigo.'
A A. disse-me hoje que está grávida de novo. Um misto de alegria e medo no olhar. Recebeu um abraço, um sorriso imenso de quem lhe quer bem. Para que consiga pôr a alegria onde até há pouco tempo só conseguia sentir dor. Para que consiga viver esta gravidez em paz.
Daqui a sete meses espero escrever aqui que tem um bebé nos seus braços.
E, nem de propósito, ao ir ao 'I Can Read', aparece-me isto à frente...