quarta-feira, 22 de julho de 2009

Do abandono

No dia do jantar, antes da hora, ia eu para casa quando avisto uma velhota no meio da estrada. Como tive medo que a atropelassem, acabei por parar e pediu-me para a levar a casa. Tinha saído do hospital, ali a dois passos. Meti-a no carro e levei-a lá. Os seguranças disseram-me que efectivamente tinha tido alta e que era habitual nela, desaparecer, sem esperar que a fossem buscar.

Dado que estava a ficar de noite e que eu, às vezes(sempre?), deixo que se instale a minha veia de Madre Teresa de Calcutá, acabei por a levar a casa. Uns míseros 14 kms que, para alguém de muletas, não são fáceis de calcorrear. Com ela a dizer-me para a deixar no meio do caminho, que pedia boleia a outra pessoa, e a queixar-se das filhas, que a tinham abandonada.

Não sei o que é verdade ou não e também não interessa. Veio-me à cabeça apenas duas coisas que eu não gostava que me acontecessem na velhice: uma, perder o juízo; outra, ficar entregue à minha sorte, sem ter a quem recorrer.

No seguimento disto, lembrei-me da A., quase família, minha afilhada de Crisma e que até hoje me chama madrinha. A A. tem 28 ou 29 anos e um ligeiro atraso que vai exigir que seja sempre acompanhada por alguém. Há uns anos atrás, perdeu subitamente o único irmão que tinha. Uma noite como todas as outras acabou num desmaio em casa e numa morte súbita. Quando cheguei a Lisboa, no dia seguinte, ainda não tinha vertido uma única lágrima. Sentámo-nos as duas a conversar no quarto dela e acabei por lhe conseguir arrancar o que lhe ia na alma: 'Sabes, madrinha, o meu mano sempre disse que não ia casar porque ia ficar a cuidar de mim. Era eu e ele. Agora... Agora é assim: os meus pais são mais velhos. Os tios também. Vão morrer antes de mim. E eu vou ficar sozinha...'
A A. tem mais família e nunca ficará sozinha, eu sei. Mas naquele dia sossegou porque eu lhe disse que, se mais ninguém houvesse, eu estaria sempre lá para ela. E estarei. Porque há quem nos entre no coração e fique lá plantado para sempre.

9 comentários:

volteface.book disse...

Pois mesmo dentro do azar, a pitucha tem sorte de ter quem ainda está.

mf disse...

volteface:
Pois tem. :)

Pulha Garcia disse...

Bem hajas. "sê a mudança que queres ver no mundo"

Apple disse...

Não quero plagiar o Pulha Garcia, mas, de facto, só me ocorre dizer "bem hajas". És um exemplo a seguir...

mf disse...

Pulha e Apple:
Pensei muito se havia de postar isto ou não, porque não gosto de ficar com aquela sensação que me estou a gabar ou a dar um ar de boazinha. Depois achei que, se ando numa de explorar tudo o que vai cá dentro, então não posso pôr de lado o que é positivo. Saiu como saiu, bom ou mau é meu, apeteceu-me pôr para fora e foi o que fiz. Ver um 'bem hajas', contudo, deixou-me desconfortável. Talvez porque o sentimento de que sou apreciada não seja uma coisa muito comum cá dentro de mim. Mas sabe bem. Muito bem, até. Obrigada aos dois. :)

Apple disse...

Acredito que os elogios, os apoios, os reconhecimentos (e as broncas também, vá lá...)são para serem dados quando merecidos, sem nenhum género de constrangimento. Por tudo o que tens mostrado aqui, é notório que não andas "fishing for compliments". As boas práticas devem ser partilhadas de modo a consguirmos uma influência positiva no mundo que nos cerca. Por isso, repito, "bem hajas".

mf disse...

Apple:
Se se percebe 'a lógica da coisa', então já descanso. A tua penúltima frase pôs-me a pensar, acho que tens razão. Obrigada mais uma vez. :)

Pedro disse...

Foi o post que mais me emocionou nos últimos tempos.

mf disse...

Pedro:
Como não sei o que te diga, não digo nada. :)